Passados 51 anos do golpe de 1964 e
30 anos de transição controlada e tutelada (1985-2015) - ainda sem desfecho – consolida-se
no Brasil o terrível legado da ditadura militar. Trata-se do que foi caracterizado
com muita propriedade como normalização
defeituosa ou normalização da exceção
brasileira[1]. A essência desta normalização defeituosa é constituída pela reciclagem da Doutrina
de Segurança Nacional que se manifesta na permanência da tortura e do desaparecimento
forçado como sólidas instituições nacionais; na guerra generalizada contra os
pobres; na criminalização da luta dos trabalhadores e do movimento popular; na
política de encarceramento em massa; no genocídio sistêmico de jovens negras e
negros, indígenas e pobres.
O contencioso da ditadura continua,
assim, sem solução. A Comissão Nacional
da Verdade/CNV concluiu seus trabalhos em dezembro/2014 sem sequer tangenciar
as questões que interessam. São questões
de princípio – inegociáveis, portanto: a responsabilização e punição dos
torturadores e assassinos de presos políticos e opositores da ditadura militar;
a situação dos mortos e desaparecidos; a abertura irrestrita dos arquivos da
repressão; a questão da tortura; o fim da Lei de Segurança Nacional. Reproduzindo o discurso das casernas articulado
pela ditadura, o governo Dilma Rousseff (PT, PMDB, PCdoB) quer consagrar
o Relatório da CNV como o ponto final da transição política – decreta-se o fim
da história em nome da reconciliação
nacional. Impõe-se, assim, a inaceitável teoria dos dois demônios. Tal teoria,
que foi institucionalizada pelo
Supremo Tribunal Federal, em 2010, é nada menos que a interdição da punição
daqueles que cometeram crimes de lesa humanidade. Estes crimes são, por definição, imprescritíveis, inanistiáveis e inafiançáveis.
O Brasil é o único país do Cone Sul da América Latina que firmou a impunidade
daqueles que torturaram, estupraram, mataram, esquartejaram e ocultaram cadáveres
de opositores da ditadura. Por isto
mesmo o Estado brasileiro, também em 2010, foi condenado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos por omissão quanto aos crimes da ditadura. Hoje, cinco anos depois, este Estado não deu
um passo sequer para efetuar o cumprimento da sentença condenatória.
O
aparato repressivo da ditadura não só se manteve, como tem sido repaginado e incrementado. Exemplo gritante é a chamada política de pacificação representada
pelas Unidades de Polícia
Pacificadora/UPPs e pela naturalização da ocupação das favelas e comunidades
de periferia pela Polícia Militar, pelas Forças Armadas e pela Força Nacional
de Segurança Pública. A Polícia Militar brasileira é a mais violenta do planeta
– a que perpetra o maior número de assassinatos entre todos os países do mundo. Casos emblemáticos como o do pedreiro
Amarildo de Souza - torturado, morto e desaparecido,
no Rio de Janeiro, em julho de 2013, pela UPP da Rocinha - são reproduzidos aos
milhares, Brasil adentro e afora. Nos XV
Jogos Pan-americanos (Rio de Janeiro, junho de 2007), houve a maior ocupação
conjunta das favelas – 1 350 homens das Polícias Militar e Civil, das Forças
Armadas e da Força Nacional de Segurança Pública. O saldo foi o massacre de, pelo menos, 19
moradores do Complexo do Alemão. De maio a junho de 2007, outras quarenta e
quatro pessoas foram mortas pela polícia no mesmo local. As chacinas atingiram
aí, sistematicidade assustadora: neste mês de abril/2015, 4 pessoas foram
mortas pela polícia – entre elas, o garoto Eduardo de Jesus Ferreira (10 anos)
e Elizabete de Moura Francisco (41 anos).
A comunidade, organizada para denunciar e repudiar tamanha violência,
tem sido ferozmente violentada pelas forças de repressão. O governador Pezão (PMDB) e seu secretário de
segurança, José Mariano Beltrame, acirram a violência policial reforçando a
ocupação com o BOPE e as tropas de choque – efetivos treinados para matar.
A criminalização das lutas dos jovens, dos
trabalhadores e do movimento popular se institucionaliza. Existem atualmente, no Brasil, centenas de
indiciados e perseguidos por participarem das manifestações de 2013 e 2014.
Alguns continuam em regime de prisão fechada, como os companheiros Igor Mendes
da Silva e Rafael Braga; outros estão em prisão domiciliar ou em liberdade
condicional. Dezenas de trabalhadores estão presos por lutarem por seus
direitos. Os trabalhadores do campo, na sua luta permanente contra o
agronegócio e o latifúndio, são também alvos preferenciais da repressão. Na prática, o Brasil tem se tornado uma
imensa UPP cujo alvo é constituído pelos dois terços da população que vivem no
limiar da linha de miséria. Não se pode perder de vista que o país
continua a ser o campeão mundial em concentração de renda/desigualdade social.
Na
institucionalidade, a esfera parlamentar – historicamente conservadora -
apresenta a composição do Congresso Nacional mais reacionária desde os tempos
da ditadura militar. Sua representação
mais acabada é a Bancada BBB/Bíblia, Boi e Bala.
A Bancada BBB domina o
Congresso e é composta por fundamentalistas cristãos, ruralistas, policiais e
militares, que pertencem aos seguintes partidos: PSDB (o mesmo de Aécio Neves,
Anastasia e Geraldo Alckmin), DEM, Solidariedade, PSC, PRB e PMDB. Figuras sinistras como os presidentes
da Câmara e do Senado, Eduardo Cunha (PMDB) e Renan Calheiros (PMDB)
potencializam todo este reacionarismo. O
deputado Jair Bolsonaro (PP) o leva às máximas consequências com sua
postura LGBTfóbica, machista e racista, com sua defesa histérica da ditadura
militar, das torturas e da repressão generalizada. Marco Feliciano (PSC) – que
já ocupou a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara
dos Deputados – combate extensiva e intensivamente os direitos da comunidade
LGBT e os direitos das mulheres – sobretudo a liberação do aborto. A Bancada
do Boi tem reforço no primeiro escalão do governo Dilma Rousseff. Kátia
Abreu, uma de principais lideranças do latifúndio e do agronegócio, é a atual
Ministra da Agricultura (?). As façanhas desta turma beiram o fascismo: redução
da maioridade penal de 18 para 16 anos (PEC 171/1993); iniciativas hidrófobas
de retirada dos direitos das mulheres e da comunidade LGBT; obstáculos e recuos
em relação à demarcação das terras indígenas; processo de aprovação da
terceirização (PL 4330/2004), que significa a liberação geral - sem qualquer escrúpulo,
entrave ou limite - da exploração dos trabalhadores. Tal projeto tem no arquipelego deputado
Paulinho da Força Sindical (Solidariedade/SP) o maior defensor, em aliança com
Eduardo Cunha e Paulo Skaf, presidente da FIESP.
Este
reacionarismo se expressa em toda a sua crueza nas manifestações dos dias
15/março e 12/abril, quando setores da direita – que, por serem pontuais, não
deixam de ser nefastos - clamaram abertamente por intervenção das Forças Armadas/golpe
militar e por um projeto de sociedade excludente, espoliador, segregacionista e
opressor. O aparato midiático burguês
tem potencializado este tipo de evento ao dar a eles cobertura semelhante à da
Copa do Mundo, repetindo à exaustão suas pautas.
A Frente Independente pela Memória, Verdade e
Justiça (FIMVJ/MG) reitera que esta situação de extrema violência estatal,
institucional e policial só pode ser combatida pela classe trabalhadora e o
movimento popular a partir de sua organização independente em relação ao
Estado, aos governos, aos patrões e à institucionalidade.
*Neste material de apresentação e divulgação da
FIMVJ/MG reafirmamos nossos princípios: além desta nota, nele reproduzimos
nossos principais documentos e nossas lutas permanentes contra o terror de
Estado e do capital.
Belo Horizonte, 25 de abril de 2015
Frente
Independente pela Memória, Verdade e Justiça de Minas Gerais (FIMVJ/MG)
*Na atividade do dia 25/04 será distribuído material de apresentação e divulgação
da FIMVJ/MG que inclui esta nota e outros documentos.
[1] O
primeiro termo é de Irene Cardoso no artigo ‘Memória de 68: terror e interdição
do passado’. Tempo social, v.2, n.2, 2º semestre, 1990, p. 101-112. O segundo é de Thales Ab’Sáber no artigo ‘
Brasil, A ausência significante política (Uma comunicação)’. In: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir
(orgs.). O que resta de ditadura. São
Paulo: Boitempo, 2010, p. 189.
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